O rio

O rio

sexta-feira, novembro 09, 2007

Avalanche

Parada em frente ao monitor, numa sexta à noitinha, quando meio mundo repousa e outro meio vai para a night eu pergunto-me por que carga de água não estico os ossos e não descanso. Tenho a cama como certa... deve ser por isso. Sei que amanhã, se tudo correr bem, me levantarei mais tarde. Se o cão não se lembrar de começar às lambidelas, e os gatos não atirarem nada ao chão, com os primeiros raios de sol, naquelas maluqueiras de correria pela casa.
Os dias correm demasiado depressa e a avalanche de emoções fortes. Tento gerir tempo e trabalho, organizar a vida e a casa, mas falho o tempo todo com o cansaço a tinir e a toldar-me a tola.
Apesar de tudo, a cada dia que passa sinto mais força para continuar. É levantar a correr, comer a correr e trabalhar a correr. O que me vale é ter a filha mais doce da face da Terra, que entende a ginástica da vida e, apesar de tudo, pouco resmunga. Não herdou isso de mim, que resmungo a todo instante. Quase a perder o pio com a rouquidão, consigo enfrentar quem me provoca, de forma bem mais coerente e sem medo. Se ferem gratuitamente, levam por tabela. E engolir a tristeza, que pesa como chumbo no coração, vai sendo menos frequente.
Um dia destes encontrei cigarros inteiros no lixo. Estranho! Pensei. Não me lembro de ter feito isto. Questionada, a nina, em situação de desabafo e de sufoco lá disse que tinha sido ela, e cheiinha de razão: Eu não quero que fiques doente. O baque surdo estoirou. Tenho que pensar na responsabilidade de a criar. Ela é bem mais orientada que eu. Para não falar que, muitas vezes, toma conta de mim e me avisa do que está em falta: Hello! Mãe! A senha está comprada. Deus a abençoe. As fadinhas lá me vão dando alento, ora com uma palavra, ora com um abraço. E o reforço positivo consegue milagres. Bati de frente com colegas, resmunguei com funcionários, entorpece-me e arrelia-me ver o marasmo e a fata de sensibilidade à minha volta. Grande parte dos crescidos esquece que as crianças merecem respeito e atenção. A escola parece uma fábrica.
De novo aquela frase me assalta : Não poderás nunca mudar o Mundo.
Eu sei bem disso. Mas por não poder mudá-lo tenho que lhe fazer mal também? Teremos nós que ser iguais aos demais? Bolas! Se assim é, não sou daqui.
Ontem, depois do cansaço se instalar definitivamente, cheguei ao quarto. No chão, dois fios de lã esticados, atravessavam o caminho. Estranho! Pensei. Não me lembro de ter deixado isto aqui. Debaixo da cama, contente da vida, o Miró tentava embaraçar um novelo inteiro. Não gritei. Sorri. Sentei-me no chão, e calmamente, enrolei a lã, desembaracei e observei o gato aos pinotes. A hora de deitar chegou e todos se aconchegaram, escolhendo o lugar na cama. A paz e o carinho tomou conta do meu coração e senti a benção de estar junto de quem amo para sempre. Ao longo destas últimas semanas, as revelações assolam-me. Vejo com melhor nitidez os gestos de amor e de malvadez. Afasto-me da maldade e privilegio a doçura. E nesta amálgama de sensações, tenho a impressão de que ainda me falta aprender muita coisa, ou talvez pô-la em prática. Tenho que ser capaz de conter a ira provocada pelo comodismo, a inércia e a aceitação tácita de que se está mal e devemos continuar mal, porque é o nosso fado.