O rio

O rio

terça-feira, abril 24, 2007

Para um anjo que cantou Abril

Tinha seis anos quando a mudança chegou.
Sentadas na escada da casa alugada,
que levava metade do ordenado do meu pai,
a minha mãe e as vizinhas esperavam
o desfecho de algo que lhes era longínquo.

De transistor na mão, com o medo a pairar
sobre as nossas cabeças, mas nos olhos
uma réstia de esperança que entrava
até ao peito e o fazia inchar e querer rebentar.


Ouviam-se aviões. Pelo menos lembro-me de um.
Uns dias mais tarde, pela vila, a pé,
vieram os soldados que traziam um
soldado, morto no ultramar,
de regresso à terra que o viu nascer.


A vizinha, ao meu lado, com um imenso
ramo de cravos vermelhos, apertados ao peito,
oferecia generosa e muito comovida,
a cada soldado que a pé passava,
em silêncio e a marchar.

Lembro o som das botas e logo associo
à primeira canção que a minha mãe pediu
no programa de rádio que tinha por
nome
Discos Pedidos, penso eu, seria "Quando o Telefone Toca" -
"Grândola Vila Morena", de Zeca Afonso.


Lembro de ver a minha mãe a misturar água quente
e farinha para ter cola e poder colar cartazes
uns tempos depois, por baixo da janela da casa
e da genica e a certeza com que defendia Eanes e Otelo.


Lembro-me de como ela chorava quando nos contava
quem fora o General sem Medo e de como o meu
avô materno, homem grande e forte, de coração doce,
defendia e o admirava e de o avô ouvia notícias na BBC
com o copo de água sobre o mesmo,
crendo que assim não
seria detectado.


Lembro das imagens de libertação de José Mário Branco.
Lembro de Custóias... Lembro os comícios e o
lencinho vermelho com a foice a estrela e o martelo
amarelos que usávamos com um orgulho tão
grande para uns fedelhos tão pequenos.


A áurea que sobre nós caiu, sobre as vizinhas, uma áurea de
entreajuda, com olhares de riso e de paz estão gravados
na memória.
Quando o M. Guilherme pintou
"a mão" do PS , como lhe chamávamos, na porta da garagem,
na chapa de zinco. Duma garagem que nem da mãe era.

Quando o socialismo cheirava a partilha e a entreajuda.

Lembro o anjo, dos muitos anjos que em Abril e
antes dele correram terras de aquém e de além mar,
e abrindo os olhos, firmaram pernas
e gritaram alto a palavra : Basta!



A Salgueiro Maia, a todos os soldados que seguiram
os seus capitães porque acreditaram que o
amanhã iria ser melhor.
Teria que ser melhor!

Aos cantores que ficaram a pairar sobre
nós para nos lembrar que vale a pena querer
o bem comum, haja o que houver.

Um dia Abril será melhor.

As conveniências, as conivências, as poucas ciências...

José
nome de rei
sem manto nem coroa...
simples na palavra,
no gesto e na voz.
Afonso,
nome de rei
acima da leviandade e mediocridade de outros.

Cantou a raiva e a dor
dos que apenas mostravam o medo e a fome no olhar.
As injustiças,
a mentira descarada foi sempre por ele apontada.

Brincou com a acéfala camada que teimava
em manter um povo inteiro no turpor.


Zeca Afonso poeta cantor, andarilho e sonhador foi lembrado esta madrugada, por volta das duas da manhã. Hora, de facto, nobre para lembrar algo que querem repetir.