Há muitos anos... quase metade dos que eu já vivi, nasceu uma pimpolha que foi abençoada com uma inteligência acutilante, aguçada ainda mais pelo pai dela. Desde bem pequenina, ela palrava. Tivemos grandes conversas, mesmo daquelas próprias de gente crescida. Aposto que Sócrates ( o mais antigo), Platão, Aristófanes ( não sei bem se este existiu, mas acabou de saltar da minha cabeça), Héracles, Hipócrates Descartes, Kant, todos se perguntaram muito mais tarde, na idade já adulta, coisas que a ela lhe interessaram quando só tinha 4 anos.
De cabelo curtito, olhar vivo, de um castanho escurinho, a minha afilhada presenteou-me, como menina-anjo que é, momentos deliciosos que quero que perdurem na memória. Dançámos ao som de Allison-Moyet "Is this Love", ela sem saber o que a letra queria dizer, rodopiava nos meus braços pela sala da casa da minha mãe, enquanto eu fazia um treino terrível para dizer, ao mesmo ritmo que a cantora umas partes do refrão "they never would be teasing me as viciously as this". Traduzido quereria dizer que nunca seria gozada, aldrabada, enganada tão perniciosamente como naquele momento... mal eu sabia o que a vida me guardava para ensinar e pior ainda, como é fácil enganarem-me.
Mas voltando à princesa dos olhos doces, foi aos 4 anos que, num dia de céu azul e algumas nuvens branquinhas a polvilhar, a S. abriu a porta da rua, e me perguntou:
-Madrinha, o avô anda nas nuvens, no céu, às cavalitas de Jesus?
Hoje a resposta seria mais calma e segura... na altura, eu tinha uns 20 anos e as dúvidas sobre tudo eram piores que as de Descartes, Marx, Kant e todos os pensadores juntos... fiquei-me por um "sim, anda", creio eu.
Queria poder ter-te dito que sim, com toda a certeza. Os nossos avós, e todas as pessoas queridas, estão em Deus, numa Paz brilhante, cheia de Luz maravilhosa, onde impera o Amor puro, silencioso, mas tão revigorante, tão avassalador, tão criativo, tão delicioso, que de onde os avós estão, conseguem emanar para nós toda a doçura, a protecção a alegria de que precisamos. E que são fonte inesgotável de força, perseverança, que te acompanharão e cuidarão para sempre e que te amam muito.
Noutra altura, não longe deste momento precioso, a pergunta foi mais aterradora:
- O que é a alma, madrinha?
Aqui, sem chão, eu deixei o coração falar por mim. E no coração, toda a gente sabe, mora Deus.
- Olha, quando tu enches o peito de ar a respirar, faz lá como a madrinha. (E inspirei) Ela copiou-me. Ficamos cheias de ar, não é? Mas não vês o ar. A alma é algo assim. Temos todos, mas não vemos.
Se fosse hoje, meu amor, dir-te-ia que a alma está em nós e todos os dias pode viajar para perto de quem amamos, para completar a alma gémea. Diria que a alma tem cor, é luminosa e branca, pura, e perfeita e que somos seres perfeitos a quem teimam fazer crer que carregamos a imperfeição. Dir-te-ia que a tua alma é eterna, que viaja num tempo que não existe, mas que teimamos em balizar, e acalmaria a tua ansiedade dizendo simplesmente que estaremos sempre juntos, todos nós, seja onde for e quando for, porque somos todos eternos. Apenas mudamos de "roupa".
No espírito criativo da minha menina-anjo, que até hoje não pára de pensar ( nisto não sai à madrinha), ainda saltou uma pergunta que me fez sorrir de prazer, por ser tão prática, e ao mesmo tempo generosa até para o seu anjo da guarda. A tua mania de poupar os outros ao cansaço e ao sofrimento já estava ali inscrita sob a tua pele aos 4 anos, maria papoila. Rezava ao anjo da guarda numa noite, assim:
- "Anjo da garda, da minha cãopanhia, guadai a minha auma de noite e de dia."
E numa tirada rápida , vira-se para mim e diz:
- "Ó madinha, de dia não é peciso que eu tou acodada!"
Adoro-te S.
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